Covid-19 Desmascara Software de Prontuário de Pacientes

 


Há mais de vinte anos publicamos trabalho mostrando a dificuldade de ser desenvolver um sistema de prontuário eletrônico computadorizado que tivesse a utilidade de ser usado no processo de cuidados de saúde, considerando a falta de padronização de dados e o fato de que um sistema de informação em saúde é um sistema social, que exige informação disponível no ponto e hora do cuidado. Na época, a prática era desenvolver sistemas de registros de pacientes que viessem atender aos interesses financeiros dos hospitais, os quais ainda são usados nos dias de hoje.

Recentemente desenvolvemos trabalho sobre as dificuldades de ser ter uma tecnologia de informação em saúde sustentável e o coronavírus está mostrando que o que se tem aí são tecnologias insustentáveis.1 Usando a filosofia de Michel Foucault, o Professor Colin Koopman e colegas, da Universidade de Oregon, USA, elaboraram um profundo estudo sobre o uso do prontuário eletrônico, publicado há poucos meses, concluindo que o que temos hoje são dados direcionando a saúde e a doença. A dependência do prontuário eletrônico de exigências das empresas de seguros frequentemente transforma os pacientes em unidades de faturas de pagamento.2

Por sua vez, há poucos meses,15 centros de pesquisa de diferentes universidades dos Estados Unidos pediram ações urgentes para se desenvolver e implementar sistemas de informações em saúde, redes e plataformas que tenham a possibilidade de compartilhar dados entre diferentes instituições, com a capacidade de responder às questões críticas importantes desta Pandemia e de outras condições de saúde.3

Infelizmente, no mundo ocidental, os vendedores de software e alguns consultores é quem definem as necessidades dos usuários no tocante à definição de sistemas de informação. Consequentemente, a tecnologia de informação é orientada pelo mercado e não pelas necessidades do usuário, ou seja, as pessoas têm de se ajustar à tecnologia e não a tecnologia ser ajustada aos interesses do usuário, em benefício do bem-estar e qualidade de vida. Além disto, muitas vezes quando a tecnologia de informação é introduzida nos países em desenvolvimento, geralmente foram desenvolvidas como aplicações e sistemas que são “soluções do primeiro mundo” para “problemas do primeiro mundo.” Ora, se não resolvem nem os problemas do primeiro mundo, são inúteis para os países em desenvolvimento.

Assim sendo, os sistemas de informação em saúde tradicionais foram desenvolvidos com forte ênfase na engenharia de software, negligenciado a participação dos usuários. Em outras palavras, decisões técnicas de engenheiros de software foram mais relevantes no processo de desenho do que a participação de não-engenheiros ou usuários, sempre muito limitada.

O chamado Desenho Participativo, originalmente chamado de Desenho Cooperativo, que teve origem nos países escandinavos ainda é um enfoque relativamente novo no desenho de produtos. Este enfoque enfatiza os stakeholders, designers, pesquisadores e o usuário final no processo de desenho. No caso da tecnologia de informação em saúde, os usuários principais são os médicos, enfermeiras, assistentes sociais, profissionais paramédicos, entre outros. Nem sempre participam do desenvolvimento destas tecnologias e sofrem com a imposição de sua implementação. Infelizmente, as metodologias top-down de desenvolvimento de sistemas de informação ainda são predominantes.

Em resumo, o desenho participativo é um enfoque que traz os usuários para o processo de desenho, emponderando-os de tal forma que a preocupação principal é a de construir sistemas mais adequados para suas necessidades. Neste processo de prescrever atitudes de inclusão dos usuários e sua participação pensante, tanto o lado técnico como não-técnico tornam-se sensíveis aos desafios político e ético que irão enfrentar como designers de uma nova tecnologia. Assim sendo, o desenho participativo adota o enfoque de desenvolver sistemas tecnológicos que podem ser melhorados ao incluir os usuários no processo de desenho.

Ainda disto, não se pode deixar de se observar a sociologia médica mostrando os problemas que se pode ter com a difusão de informações do paciente online, comprometendo o trabalho clínico, a relação médico-paciente e a autoridade da medicina. Enfim, são inúmeros os questionamentos que se deve ter durante o desenho de um sistema de prontuário eletrônico. Felizmente, a literatura está mostrando boas experiencias de desenho participativo no desenvolvimento de sistemas de informação em saúde em vários países.

No caso do Brasil, que sempre teve uma história repleta de irregularidades na aquisição de tecnologias de informação em saúde, favoráveis aos atores corporativos e gestores de saúde, ao invés de atender necessidades básicas, é lamentável saber que a corrupção continua como sempre na aquisição destas tecnologias, como mostra o Tribunal de Contas da União (TCU). O mais absurdo, pelas informações recentes do TCU, a alta cúpula do Ministério da Saúde não participou de decisões na área de tecnologia de informação em saúde, prevalecendo as iniciativas dos burocratas do setor de TI.  

Por fim, as ações dominantes do setor privado no processo de tomada de decisão enfatizam o modelo top-down ou enfoque de ferramentas (tool-approach) no sistema saúde do país, cujo resultado é a perda de recursos, ineficiência tolerante, corrupção e má gestão. Nem precisava da Covid-19 para saber disto.

1.Rodrigues Filho, J. The Challenges of Implementing eHealth Technology for Sustainability in Brazil. Journal of Sustainability and Management. Vol. 9(1), 2019.

2. Koopman, et al. (2021) When data drive health: an archaeology of medical records technology. BioSocienties.

3. Madhavan, S. et al. (2021). Use of electronic health records to support a public health response in the United States: a perspective from 15 academic medical centers. Journal of the American Medical Informatics Association, 28(2): 393-401.


Comentários